Otto Rank, então doutor em Filosofia e Letras pela Universidade de Viena, passará a assinar com Freud a quarta edição da obra A interpretação dos sonhos, publicada em 1914. Logo em sua capa, encontramos a seguinte menção: vierte vermehrte Auflage mit Beiträgen von Dr. Otto Rank, ‚quarta edição ampliada, com contribuições do dr. Otto Rank‘. A mesma menção se encontra na edição seguinte, de 1919, e a referência às contribuições de Rank será mantida até a sétima edição da obra de Freud, publicada em 1922. Na oitava, de 1930, aquela que serve de base para a maior parte das traduções contemporâneas do livro, a menção será retirada, assim como as contribuições propriamente ditas de Otto Rank à obra fundadora da psicanálise. As causas dessa supressão parecem estar ligadas mais a questões políticas e relacionais do que verdadeiramente epistêmicas. Foi a ruptura de Rank com o movimento psicanalítico — e do próprio movimento psicanalítico com Rank — que conduziu os editores de A interpretação dos sonhos a realizar uma operação cirúrgica, procurando extirpar da obra quase todos os traços de sua participação. Mas antes de tecer alguns comentários a esse respeito, poderíamos nos perguntar: o que de Rank teria permanecido em Freud após esses mais de quinze anos de colaboração editorial?
Über den Autor
OTTO RANK (1884-1939) foi sobretudo um homem das letras. Tornando-se pupilo de Sigmund Freud aos 21 anos de idade, contribuiu enormemente para a construção da memória escrita da psicanálise nascente: seja por meio da efetuação de registros ensejados pelo movimento freudiano da época; seja pela atuação como diretor administrativo da editora psicanalítica; seja, no decorrer de vários anos, pela colaboração no diligente trabalho de atualização da obra-prima de Freud: aquela que resgatava, no fenômeno onírico, justamente a possibilidade de uma leitura — trabalho que rendeu a Rank a singular distinção de constar, junto com o nome de Freud, na folha de rosto de uma publicação sua. No entanto, não foi apenas em colaborações que a letra rankiana mostrou seu peso, e isso desde o início: cumpre lembrar, por exemplo, que sua pesquisa de doutorado, desenvolvida no campo da literatura, é considerada o primeiro trabalho acadêmico de bases psicanalíticas. Anos depois, porém, o peso dessa escrita pareceu desbalancear os pratos do freudismo: se numa carta a Sándor Ferenczi, redigida em 24 de março de 1924, Freud chegou a dizer que era nas pesquisas de Rank sobre o trauma do nascimento que residia ‚o maior progresso desde a descoberta da psicanálise‘, esse progresso seria mal recebido pelo círculo próximo, e depois pelo próprio Freud, como linhas que derivavam para longe do tinteiro — o que renderia a Rank, num segundo momento, a singular rasura de seu nome do livro dos sonhos. Ironicamente, porém, foi o próprio Freud quem legou com sua pesquisa que a rasura é, por assim dizer, a via regia de uma leitura digna de seu nome.