‘Reencantar o mundo’ ressignifica as categorias marxistas, reinterpretando-as em uma perspectiva feminista. ‘Acumulação’ é um desses conceitos, assim como ‘reprodução’. ‘Luta de classes’ é um terceiro, inseparável do quarto, ‘capital’. Para Federici, a ‘teoria do valor do trabalho’ ainda é a chave para entender o capitalismo, embora sua leitura feminista redefina o que é trabalho e como o valor é produzido. Ela mostra, por exemplo, que a dívida também é produtiva para o capital: uma poderosa alavanca de acumulação primitiva — empréstimos estudantis, hipotecas, cartões de crédito e microfinanças — e um mecanismo de divisões sociais. A reprodução (educação, assistência médica, pensões) tem sido financeirizada. Esse cenário vem acompanhado de uma deliberada etnografia da vergonha, sintetizada pelo Grameen Bank, que toma até as panelas dos ‘empreendedores’ inocentes e empobrecidos que atrasam os pagamentos. John Milton, autor de Paraíso perdido, o poema épico da Revolução Inglesa, condenava a prática de ‘apreender panelas e frigideiras dos pobres’. Ele também viu a vergonha e a astúcia: primeiro, cercar a terra; depois, apossar-se da panela. (Ou seria o contrário?) Federici toma partido e faz isso de forma distinta dos outros. Existe a escola de ‘recursos comuns’, os comuns sem a luta de classes. Há a escola que enfatiza a informação e o capitalismo cognitivo, mas ignora o trabalho das mulheres na base material da economia cibernética. A escola da ‘crítica da vida cotidiana’ esconde o trabalho interminável e não remunerado das mulheres. A reprodução de um ser humano é não só um projeto coletivo como também o mais intensivo de todos os trabalhos. Aprendemos que ‘as mulheres são as agricultoras de subsistência do mundo. Na África, elas produziam 80% da comida consumida pelas pessoas’. As mulheres são guardiãs da terra e da riqueza comunitária. São também as ‘tecelãs da memória’. Federici olha para o corpo em um continuum com a terra, pois ambos possuem memória histórica e estão implicados na libertação.
— Peter Linebaugh, no prefácio
Sobre el autor
Silvia Federici é uma intelectual militante de tradição feminista marxista autônoma. Nascida na cidade italiana de Parma em 1942, mudou-se para os Estados Unidos em 1967, onde foi cofundadora do International Feminist Collective (coletivo internacional feminista), participou da Wages for Housework Campaign (Campanha por um salário para o trabalho doméstico) e contribuiu com o Midnight Notes Collective (coletivo notas da meia-noite). Durante os anos 1980 foi professora na Universidade de Port Harcourt, na Nigéria, onde acompanhou a organização feminista Women in Nigeria (mulheres na Nigéria) e contribuiu para a criação do Committee for Academic Freedom in Africa (comitê para a liberdade acadêmica na África). Na Nigéria, pôde ainda presenciar a implementação de uma série de ajustes estruturais patrocinada pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial. Atualmente, Silvia Federici é professora emérita da Universidade de Hofstra, em Nova York. É autora de Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva (Elefante, 2017) e O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista (Elefante, 2019).