Entre meados do século XIX e as primeiras décadas do século XX, Arthur Schopenhauer foi um dos filósofos mais lidos e apreciados do público, graças a suas ideias pessimistas e à verve indomesticável da escrita. Além do grande sucesso em geral, escritores e pensadores como Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud, Machado de Assis, Thomas Mann, Ludwig Wittgenstein e Jorge Luis Borges estão entre aqueles que na época frequentaram as suas páginas, delas tirando inspiração para as próprias obras. Não era para menos.
Na grande arca de pensamentos encontrados em seus escritos, a teoria schopenhaueriana do sonho constitui um marco na história da filosofia, por ter modificado radicalmente a maneira de considerar a elaboração onírica. Até ele, os filósofos da tradição europeia encaravam o sonho de maneira desfavorável, como um estado ilusório e quimérico, oposto à clareza, ordenação e ‘normalidade’ da vida desperta. Inspirando-se principalmente na literatura, Schopenhauer mostra, ao contrário, que o sonho também tem lógica e coerência, que não é uma interrupção anômala da vigília, mas um estado que apresenta profunda continuidade com ela. A vida se assemelha a um livro lido em sequência; o sonho é o mesmo livro, que se abre, no entanto, sem querer, do qual a cada noite é dado conhecer aleatoriamente uma das páginas.
Ao longo dos anos, Schopenhauer foi amadurecendo mais e mais sua meditação sobre a natureza do mundo onírico. Ele soube combinar magistralmente uma explicação teatral do sonho, encontrada em Addison, Lichtenberg e Jean Paul, com uma compreensão muito profunda da fisiologia humana. O sonho não reencena apenas o que ocorre durante o dia. Em muitas ocasiões, ele revela o que o sonhador é, mostrando-lhe o seu caráter mais profundo e como esse caráter está ligado inexoravelmente à conduta geral de sua vida, ao seu destino. Os textos reunidos neste volume procuram reconstituir essa ‘metafísica onírica’, que provavelmente não fica atrás da metafísica da morte e da metafísica do amor, que contribuíram para a ampla difusão de sua filosofia. Essa sua metafísica do sonho foi importante para a descoberta freudiana da interpretação dos sonhos e fundamental para que Borges chegasse a seu idealismo fantástico.
Table des matières
SOBRE ESTA SELEÇÃO, 9
O TEATRO DA VONTADE por Márcio Suzuki, 13
PARA UMA METAFÍSICA DO SONHO
ESPECULAÇÃO TRANSCENDENTE SOBRE A APARENTE INTENCIONALIDADE NO DESTINO DO INDIVÍDUO, 35
A FISIOLOGIA DO SONHO, 65
DRAMATURGIA ONÍRICA, FISIOLOGIA, 81
A propos de l’auteur
Arthur Schopenhauer (Danzig, 22 de fevereiro de 1788 – Frankfurt, 21 de setembro de 1860) foi um filósofo alemão do século XIX. A partir do idealismo transcendental de Immanuel Kant, Schopenhauer desenvolveu um sistema metafísico ateu e ético que tem sido descrito como uma manifestação exemplar de pessimismo filosófico. Schopenhauer foi o filósofo que introduziu o pensamento indiano e alguns dos conceitos budistas na metafísica alemã. Foi fortemente influenciado pela leitura dos Upanishads, que foram traduzidas pela primeira vez para o latim por Abraham Hyacinthe Anquetil-Duperron, no início do século XIX.
Misantropo, pessimista, solitário, individualista e crítico ferrenho da sociedade, Schopenhauer considerava o amor apenas como vontade cega e irracional que todos os seres têm de se reproduzir, dando assim continuidade à vida e, por conseguinte, ao sofrimento. A sensação de felicidade que o amor traz é apenas o interrompimento temporário do querer, a fuga de uma dor imposta pela vontade. Para Schopenhauer, somente o sofrimento é positivo, pois se faz sentir com facilidade, enquanto aquilo ao qual chamamos felicidade é negativo, pois é a mera interrupção momentânea da dor ou tédio, sendo estes últimos a condição inerente à existência. Considerava esse impulso de reprodução, esse ‘gênio da espécie’, tão forte como o medo da morte, daí que muitos amantes arriscam a vida e a perdem obedecendo a este desejo.