O Sr. Hume possui um sentimento delicado, um pensamento de feitio original, uma linguagem perspícua, não raro elegante, qualidades que não poderiam deixar de recomendar seus escritos a todo leitor de bom gosto. É pena que um gênio como esse empregue as suas habilidades como frequentemente o faz em seus ataques à religião de seu país. Ele não age como um inimigo franco e leal, mas tenta enfraquecer a autoridade dela por meio de sugestões oblíquas e insinuações ardilosas. Desse ponto de vista, sua obra não merece muita estima, se é que merece alguma; e poucos leitores dotados de discernimento o louvarão com epítetos de acuidade ou elegância, se considerarem que ele emprega essas qualidades para preencher a mente com as incômodas flutuações do ceticismo e com uma infidelidade sombria.
William Rose, 1757
As paixões nunca foram bem vistas pelos filósofos. De Platão e Aristóteles a Descartes e Hobbes, elas são o contraponto da razão. Imiscuindo-se na imaginação, atrapalham as deliberações razoáveis e perturbam a conduta. Incontornáveis, porque enraizadas no corpo, devem ser contidas. Em manuais dedicados à conduta do entendimento, Locke e Espinosa tentam proteger as ideias retas e sãs contra a ação insidiosa desse inimigo formidável. Nessa história de desconfiança, Hume é a exceção. Adepto de uma filosofia experimental pautada por um rigoroso método de análise da experiência moral, ele se distancia dos filósofos e aproxima-se dos moralistas. É um admirador dos preceitos clássicos do Grande Século francês, época em que a boa sociedade se dedicava ao que Auerbach chamou de ‘culto das paixões’. Leitor de Racine, Hume descobre nas próprias paixões o antídoto para os males que elas causam. Doravante, não se trata mais de suprimi-las, nem mesmo de contê-las. Apropriando-se da sua força magnífica, a arte, e em especial a arte de escrever, elabora uma pedagogia da sensibilidade. A partir desse preceito, Hume tece considerações críticas sobre a oratória, a tragédia, a poesia e a história, ocupando-se delas em seus ensaios morais e literários (publicados pela Iluminuras no volume A arte de escrever ensaio). Já neste outro volume, o leitor encontrará, além da Dissertação sobre as paixões, que retoma o livro II do Tratado da natureza humana, o opúsculo História natural da religião. Esse texto veemente encontra as paixões na origem primeira da religião. Mas que não se espere desse cético convicto uma defesa da ‘religião natural’, baseada na ciência e na razão. A implacável descrição da gênese do fenômeno religioso termina com um elogio da descrença. Mas não do niilismo. Para Hume, a contraparte da dessacralização do mundo é, justamente, aquele ‘culto das paixões’ que ensina a conviver em sociedade e a usufruir do prazer a que a natureza humana está predisposta.
Pedro Paulo Pimenta
Table des matières
Índice
Uma anatomia das paixões, 9
Pedro Paulo Pimenta
Nota sobre a tradução, 27
Dissertação sobre as paixões, 29
Seção I, 31
Seção II, 37
Seção III, 52
Seção IV, 55
Seção V, 59
Seção VI, 61
História natural da religião, 67
Introdução, 69
Seção I, 70
Que o politeísmo foi a primeira religião dos homens
Seção II, 74
Origem do politeísmo
Seção III, 77
Continuação do mesmo tópico
Seção IV, 81
Que o politeísmo não considera as deidades como criadoras ou formadoras do mundo
Seção V, 88
Formas variadas de politeísmo: alegoria e culto heroico
Seção VI, 92
Origem do teísmo no politeísmo
Seção VII, 97
Confirmação dessa doutrina
Seção VIII, 99
Fluxo e refluxo do politeísmo e do teísmo
Seção IX, 101
Comparação dessas religiões, quanto a perseguição e tolerância
Seção X, 104
Comparação dessas religiões, quanto a coragem e covardia
Seção XI, 106
Comparação dessas religiões, quanto a razão e absurdo
Seção XII, 108
Comparação dessas religiões, quanto a dúvida e convicção
Seção XIII, 121
Concepções ímpias da natureza divina em ambos os gêneros de religião popular
Seção XIV, 125
Influência nociva da religião popular na moral
Seção XV, 130
Corolário geral
A propos de l’auteur
David Hume foi um filósofo, historiador e ensaísta britânico nascido na Escócia que se tornou célebre pelo seu empirismo radical e o seu ceticismo filosófico.