Depois de tratar da emancipação humana de certa ordem do conhecimento (O mestre ignorante) e de certa ordem do tempo e das atividades que hierarquiza os seres humanos (Tempos modernos), Jacques Rancière se volta à arte dos jardins, no que à primeira vista configuraria um desvio em seu percurso intelectual. A via que ele toma, no entanto, segue à risca o programa de sua filosofia: é pela reconfiguração de uma realidade sensível partilhada, e pelas condições subjetivas em que ela pode se dar, que ele retoma a velha cisão natureza-cultura no seio dos debates sobre a arte. Mais do que o veículo de expressão de um espírito criativo, a arte dos jardins, cujo meio sensível consta não de pigmentos ou de formas das quais tal espírito disporia ‘livremente’, mas de uma matéria viva, se presta, como caso limite, a efetuar uma virada crucial na maneira como percebemos a imbricação da estética, da arte, da política e da vida.
Contracapa
O tempo da paisagem aqui considerado não é aquele em que ela começou a ser descrita em poemas ou representada em murais de jardins floridos, montanhas majestosas, lagos serenos ou mares agitados. Trata-se do tempo em que a paisagem se impôs como objeto específico do pensamento. Esse objeto do pensamento foi constituído através de querelas sobre o cuidado dos jardins, descrições de parques ornados de templos clássicos ou de singelas trilhas florestais, relatos de viagens por lagos e montanhas solitárias e evocações de pinturas mitológicas ou rústicas. Este livro seguirá, então, os desvios concretos de tais relatos e querelas. Mas o que toma forma nesse percurso não é simplesmente o gosto por um espetáculo que encanta os olhos ou eleva a alma. É a experiência de uma forma de unidade da diversidade sensível, própria a modificar a configuração existente dos modos de percepção e dos objetos do pensamento. O tempo da paisagem é aquele em que a harmonia dos jardins cuidados ou a desarmonia da natureza selvagem contribuem para tumultuar os critérios do belo e o próprio sentido da palavra ‘arte’. Esse tumulto implica outro, que afeta o sentido de uma noção fundamental tanto para o senso comum quanto para a reflexão filosófica, a noção de natureza. Ora, não se pode tratar da natureza sem tratar da sociedade que obedece a suas leis, e o tempo da paisagem é também aquele em que a organização feliz da sociedade toma emprestadas da natureza suas metáforas: a harmonia dos campos, das florestas ou dos cursos d’água. Jacques Rancière
A propos de l’auteur
Jacques Rancière nasceu em Argel, na Argélia, em 1940. É professor honorário da Universidade de Paris 8, onde lecionou no Departamento de Filosofia de 1969 a 2000. Também deu aulas na European Graduate School e em diversas universidades nos Estados Unidos. Sua obra é essencialmente consagrada ao estudo das relações entre estética e política. É autor de O mestre ignorante, O espectador emancipado, A partilha do sensível, Tempos modernos e diversas outras obras.