Carla Akotirene faz uma crítica feminista e decolocinal dos procedimentos jurídicos expondo a institucionalização do racismo e a perseguição punitivista da população negra.
‘É fragrante fojado doutor vossa excelência’ concentra as principais críticas de Carla Akotirene aos aparelhos jurídicos brasileiros, aqui representados pela Vara de Audiência de Custódia do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. As audiências de custódia são uma oportunidade de as pessoas presas em flagrante delito manifestarem os motivos da detenção e as condições de tratamento a que são submetidas pela forças policiais e judiciais.
Esse tipo de audiência é um direito assegurado por lei ao flagranteado e, em tese, deveria resguardar a oportunidade de autodefesa da pessoa acusada de crime. Em sua abordagem original, Carla Akotirene apresenta essas audiência em ‘cenas colonais’, nas quais atores e atrizes jurídicos – juízes, defensores públicos, procuradores e policiais -, performam nas audiências de custódia como se seguissem um ritual preestabelecido. Nessas ‘cenas coloniais’, a antiga ordem escravocrata, em que senhorios brancos arbitram sobre vidas negras, continua sendo a regra da nova ‘democracia’. Esses atores e atrizes sofrem a pressão vertical da opinião pública sobre a legalidade das prisões, conferindo fé pública aos policiais executores da prisão em flagrante e impondo aos acusados suas diligências.
As audiências de custódia, segundo Carla Akotirene revela, são definidoras dos números extravagantes de encarceramento da população negra no Brasil. Com pouca margem para exercerem a autodefesa e muitas vezes mal instruídos sobre seus direitos, muitas dessas pessoas são fichadas e marcadas pelo sistema prisional por meio de provas plantadas, ou seja, flagrantes forjados. Esse tipo de indução de crime por parte das polícias não é incomum, como as entrevistas que Akotirene fez com os flagranteados indicam. Sua atuação junto aos aprisionados transforma a pesquisa de campo – fruto de anos de lida com o sistema penitenciário na Bahia – em sabedoria.
Ao invocar a epistemologia de Xangô, Akotirene apresenta uma profunda revisão crítica do pensamento social e do estigma punitivista que paira sobre o Judiciário. Ela se vale, por exemplo, de ferramentas negro-feministas de interseccionalidade, dos instrumentos jurídicos da cosmopercepção filosófica dos bantos e dos iorubás e das declarações de inocência do Antigo Egito através da filosofia de Maat. Com esses exemplos africanos de Justiça, Akotirene consegue lançar um olhar sobre o Judiciário brasileiro a distância e observa que a atuação nas audiências de custódia são o caminho para o desencarceramento da população negra que deve, enfim, encontrar o seu destino de liberdade.
Para Carla Akotirene, a prisão é o próprio racismo, e o racismo é colonial. Libertar a população negra do encarceramento em massa deve ser encarado como um dos maiores desafios do aboliconismo contemporâneo, uma vitória a ser conquistada pelo movimento negro e que representará, em um futuro breve, o fim das ‘cenas coloniais’ e a superação da ordem segregadora na sociedade brasileira.
लेखक के बारे में
Carla Akotirene (Salvador/BA, 1980) é militante acadêmica antirracista que concentra estudos sobre extermino de jovens negros, prisionizacão e racismo institucional. Coordenou a primeira Campanha Nacional contra o Genocídio da Juventude Negra, em 2010, e presta consultorias sobre violência letal em unidades socioeducativas. Doutora em Estudos Feministas, publicou Interseccionalidade na coleção Feminismos Plurais, organizada por Djamila Ribeiro (selo Sueli Carneiro/Pólen, 2018), e Ó pa í, prezada! (Polén, 2020). Atualmente coordena a Opará Saberes, curso de extensão da Universidade Federal da Bahia voltado à capacitação de candidaturas negras na pós-graduação em universidades públicas. É seguida por mais de 250 mil pessoas nas redes sociais.