O reconhecimento dos direitos de personalidade e a soma dos direitos fundamentais lastreados no princípio-garantia dignidade da pessoa humana não tem sido suficientes para debelar as práticas sociais discriminatórias em virtude de fatores como gênero, idade e deficiência. Persiste no imaginário social, a figura do sujeito de direitos abstrato ilustrado por sua normalidade e autonomia insulares que findam por diminuir e invisibilizar
aquela pessoa que traz consigo um ou vários traços de vulnerabilidade.
Quando elementos como gênero e deficiência se associam à certa condição social, nacionalidade e cor, potencializam as práticas de discriminação e de opressão das identidades, desafiando as doutrinas antidiscriminatórias. A sinergia entre essas diversas fontes de discriminação demanda que o enfrentamento também se faça de forma sistêmica, segundo o paradigma da interseccionalidade.
Nessa perspectiva, a análise de gênero e deficiência como critérios de discriminação e vulnerabilidade no âmbito do direito privado, esbarrará, inequivocamente, na interseccionalidade – ou seja, na interação sinergética entre diversas modalidades de discriminação que vulnera ainda mais a pessoa. Mais vulnerável e espoliado em sua autonomia será aquele que sofre os efeitos dos múltiplos fatores de opressão e discriminação.
A condição da mulher negra, de baixa renda, com deficiência pode se tornar ainda mais gravosa se ela for idosa; pessoa com deficiência que também é transgênero sofrerá maior sorte de preconceito. Isso força a conclusão de que a classificação das pessoas em grupos específicos, segundo o gênero, a idade ou a deficiência não formará coletivos homogêneos. Em cada um deles, haverá pessoas que sofrem mais severamente a discriminação
e um maior déficit na sua cidadania pelo entrelaçamento de outros fatores discriminantes, o que também intensifica a sua vulnerabilidade social.
Neste grande grupo formado pelo gênero feminino, há aquelas mulheres que se assentam em lugares altos e gozam de franca autonomia no ambiente doméstico e profissional, enquanto muitas outras vivem imersas em um sistema de opressão doméstica, social e/ou econômica do qual não consegue se libertar. No Brasil, o vasto rol dos trabalhadores informais, considerados altamente vulneráveis pela ausência de vínculos e condições dignas de trabalho, representa 38% (trinta e oito por cento) da população e desse contingente, 64% (sessenta e quatro por cento) são mulheres negras.
Enquanto isso, a legislação afirma a igualdade entre homens e mulheres, proibindo qualquer forma de discriminação. O Supremo Tribunal Federal reconhece o direito à identidade de gênero e autodeterminação sexual, estendendo essa igualdade às pessoas transgênero, e, nem assim, deixaram de sofrer os efeitos da exclusão e do preconceito que se materializa até mesmo na violência física.
A despeito dessa igualdade prevista na Constituição e na jurisprudência da alta corte, o patriarcado persiste na apropriação do feminino pela ocultação do valor do cuidado, na domesticação de sua autonomia corporal e nas diversas formas de violência coibidas pela Lei Maria da Penha. Manifesta-se, sutil ou escancaradamente, nas decisões judiciais que alteram a guarda ou a convivência com os filhos em virtude da vida pessoal
das mães. Julgado recente, originário da primeira instância do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, transferiu a guarda de filho menor para o pai sob a fundamentação simplista e discriminatória de que o homem, apenas por ser homem, reúne melhores condições para educar um menino.
Contraditoriamente, quando o tema é o pagamento de alimentos, desconsidera-se a vulnerabilidade daquela mulher que se manteve fora do mercado para dedicar-se às atividades do ‘cuidado’ dirigidas ao marido e aos filhos, garantindo-se-lhe, quando
muito, os alimentos compensatórios.
Circa l’autore
Ana Carolina Brochado Teixeira possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1999) e mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2004), além de doutorado em Direito pela UERJ (2009). Atualmente é professora do Centro Universitário UNA e advogada. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito de Família, Sucessões e Biodireito, atuando principalmente nos seguintes temas: direito de família, criança e adolescente, autoridade parental, convivência familiar e relações parentais.
Joyceane Bezerra de Menezes possui Doutorado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). Mestrado em Direito Constitucional (Direito e Desenvolvimento) pela Universidade Federal do Ceará (1995). Graduação em Direito pela Universidade de Fortaleza (1990), Pós-Doutorado em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2014). Exerce o magistério superior como professora titular da Universidade de Fortaleza, integrando o Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito, responsável pelas disciplinas de Direito de Personalidade e Direito dos Danos. É professora adjunto, nível 4, da Universidade Federal do Ceará – Faculdade de Direito (Departamento de Direito Privado), ministrando as disciplinas de Direito de Família e Direito das Sucessões. Desenvolve projetos de pesquisa e publicações na área de Direito Civil, com ênfase na análise de questões existenciais correlacionadas à pessoa com deficiência, à tutela da personalidade e à família. Experiência na área de Direito Civil. Editora da Pensar, Revista de Ciências Jurídicas ( ISSN – impresso: 1519-8464; ISSN – eletrônico: 2317-2150). Advogada.