Reler Ao amigo que não me salvou a vida trinta anos depois é como voltar a um mundo ao mesmo tempo ultrapassado e perdido, com um sentimento contraditório de alívio e nostalgia. Com esse mundo desapareceu a ameaça da morte inexorável pela aids, assombrando as relações sexuais e amorosas, mas também um projeto literário para o qual a autoficção era um dispositivo de consagração mais da dúvida do que do eu, no qual a morte ocupava um papel central e reflexivo.
As bases desse projeto estavam enunciadas desde La Mort propagande, romance de estreia de Hervé Guibert, publicado quando ele tinha 21 anos: ‘[A morte] será minha única sócia, serei seu intérprete’.
A aids foi o ato final — e inesperado — em que o autor, encarnando a morte, terminou por convertê-la em obra, afirmação vital.
Embora centrado no autor, Ao amigo que não me salvou a vida é composto de quem o cerca, da magia das relações amorosas e afetivas, dos amigos (como Michel Foucault e Isabelle Adjani) cuja identidade aparece mais ou menos velada sob iniciais e pseudônimos. O livro narra a descoberta da aids no corpo do autor, quando a doença ainda era uma sentença de morte. A enfermidade não permite ao autor reduzir o relato à afirmação de si, a um conto de superação. A experiência literária é antes ‘enunciação do indizível’. Quando se olha no espelho, o autor vê o ‘olhar do cadáver vivo’. A obra é o exorcismo da sua impotência. [Bernardo Carvalho]
Circa l’autore
Hervé Guibert, jornalista, crítico e fotógrafo, nasceu em Paris, em 1955. Ao amigo que não me salvou a vida foi publicado em 1990, um ano antes de sua morte.