Em 1787, às vésperas da Revolução Francesa, Sade, sofrendo de uma infecção nos olhos, escreve em apenas duas semanas Os infortúnios da virtude, obra inaugural da grande saga das irmãs Justine e Juliette, a heroína virtuosa e a libertina perversa, uma trilhando as veredas do bem, a outra as do vício e da crueldade, enfim, as personagens-síntese da simetria perfeita do sistema sadiano.
Uma não existe sem a outra, assim como um libertino não faz sentido neste universo radical e assustador sem a vítima que lhe serve de objeto de deboche e contraponto tipológico no exercício da perversidade.
Justine e Juliette representam os dois extremos complementares dessa narrativa dialógica na qual os poderes do vício triunfam e as fraquezas da virtude sucumbem inexoravelmente, como se a natureza, a grande-Mãe, inspirasse toda a narrativa, de forma retumbante, arrebatando das mãos os raios da Divina Providência para atirá-los contra os pobres infortunados.
Eis a tônica: todo virtuoso é infeliz. Assim, a pobre heroína peregrina pela França, de cantão em cantão, sem renunciar a sua fé, sem descrer nos poderes absolutos e salvadores da religião, seus asseclas e santos. […]
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AS MORTES DE JUSTINE por Contador Borges
Os infortúnios da virtude
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Donatien Alphonse François, o marquês de Sade (1740-1814), foi certamente um dos autores da literatura universal que mais sondaram os limites do homem, trazendo à luz (em pleno iluminismo) aquilo que a cultura sempre tentou ocultar: a violência do erotismo em suas mais variadas formas de transgressão. A tônica de seus principais romances, escritos ao longo de quase trinta anos em onze diferentes prisões sob três regimes distintos, é a da libertação do indivíduo mediante a corrupção dos costumes. Relegado ao esquecimento por muito tempo (somente o século XX o restituiu à luz e o consagrou), o perseguido autor de Justine e tantos outros livros escandalosos, ‘o espírito mais livre que jamais existiu’, nas palavras de Apollinaire, é hoje considerado um clássico, ao lado de Racine ou de Shakespeare um dos maiores escritores de sua época.
A coleção Pérolas Furiosas reúne pela primeira vez em língua portuguesa as principais obras desse transgressor do espírito, que via na literatura uma possibilidade de criar um mundo às avessas, onde tudo é levado às últimas consequências. Sade nos faz ver o impossível nas entrelinhas dessa realidade absurda na qual, paradoxalmente, nega-se a vida e os homens para melhor afirmá-los, vale dizer, para glorificá-los.