Nos anos 1990, César Aira explicou a origem de O vestido rosa, considerado por muitos um de seus melhores livros: ‘eu queria escrever um conto, coisa que nunca pude fazer. […] O que fiz então foi tomar um conto de que gosto muito: ‘O recado do morro’, de Guimarães Rosa. O que há ali é uma mensagem que se vai transmitindo, eu a materializei no vestidinho, mas é apenas um exercício’.
O resultado dessa mera experiência é uma magnífica narrativa de erros e travessias em que o bobo do povoado é o sábio e vice-versa. Com ela, o escritor argentino cria uma ponte entre os pampas de seu país e os gerais roseanos, abrindo caminho para o cruzamento de duas tradições fundantes da literatura latino-americana. Quatro décadas depois de sua primeira publicação, o recado dos pampas chega até nós com a primeira tradução de O vestido rosa, declaração de amor de Aira pela literatura brasileira.
Over de auteur
César Aira nasceu em 1949 em Coronel Pringles, Argentina, e vive em Buenos Aires desde 1967. Vencedor do prêmio Formentor de 2021 e considerado o maior escritor vivo de seu país, além de um expoente mundial da literatura de vanguarda, Aira é conhecido pela profusão de sua obra — que já soma quase 120 livros publicados — e pela liberdade extrema de seu projeto criativo, que obedece a um procedimento simples, batizado por ele de fuga para a frente: uma vez escrita, uma frase não deve ser alterada. Ainda que ela mude radicalmente os rumos da história que vem sendo contada, não há retorno.
Amante fervoroso da literatura — em especial da brasileira, que conhece a fundo —, Aira foi fortemente influenciado em sua trajetória pelo movimento surrealista e pelo pensamento de Marcel Duchamp. Sua obra é marcada pela procura incessante de novos caminhos para o fazer literário. Mas além da fuga para a frente, essa busca é regida por outro princípio igualmente importante: o do prazer.
A cada página dos romances amalucados e notoriamente curtos — as chamadas novelitas — é evidente que Aira se diverte enquanto cria enredos alucinados, que operam no ponto de convergência entre o hiper-realismo e o surrealismo, misturando referências da chamada alta literatura com elementos da cultura pop numa anarquia festiva — que parece antecipar o humor tresloucado que a internet popularizou —, capaz de resgatar em muitos leitores o prazer pela leitura; afinal, é impossível ler alguns de seus livros sem rir.
Além de divertida, a experiência de ler Aira é também radicalmente transgressora: no breve intervalo de uma centena de páginas, seus livros podem ter diversos estilos literários, finais abruptos, pontas soltas e toda sorte de desobediência às normas e convenções. Ao tirar até os mais experimentados leitores de seu elemento natural e desautomatizar certos hábitos que todos temos ao ler (quem de nós nunca se parabenizou por encontrar um furo na cronologia de uma história, ou antecipar o fim de um romance policial?), Aira explode todas as convenções e nos faz experimentar tudo em todo lugar ao mesmo tempo.
Dos contos de fadas ao pulp fiction, passando pela Grécia Antiga e indo parar no bairro de Flores, no coração da Buenos Aires do século 21, ou então na mítica Coronel Pringles da juventude do escritor, a jornada é cheia de aventuras e o ritmo, intenso. Com o vetor sempre apontando para o que ainda está por vir, Aira dá um passo importante em direção ao desconhecido e mostra que o futuro da arte e da literatura pode ser bem-humorado.