Repensar a cultura brasileira a partir da produção dos povos negros, entender as profundezas que a historiografia do Brasil fez questão de esconder para validar as estruturas do racismo, aplicar às manifestações de origem banto o que a crítica literária considerava apenas na arte influenciada pelos princípios europeus. É em busca dessa nova perspectiva que apresentamos a reedição revista de A saliva da fala: notas sobre a poética banto-católica no Brasil, um ensaio contundente sobre a importância cultural e literária dos cantopoemas banto-católicos do Congado mineiro.
Partindo da premissa de Antonio Candido de que, para um texto ter tratamento literário, é preciso que se sustente no tripé autor-obra-público, Edimilson de Almeida Pereira faz uma incursão pelo interior de Minas Gerais para provar que as manifestações festivas do Congado, existentes no Brasil desde o século 16, podem e devem ser consideradas obras literárias uma vez que os cantopoetas são os autores, os cantopoemas, as obras, e os devotos, o público.
Em uma análise profunda, resultado de viagens e pesquisas ao longo de quase quatro décadas, o autor extrai dessas obras a tensão que sempre permeou a convivência entre brancos e negros nas antigas colônias, tensão essa que possibilitou a fundamentação de uma cultura regida por influências tanto banto quanto católicas. Fruto da negociação entre escravizados e a Igreja, essa dinâmica deu aos negros a agência de produzir uma liturgia única mesclando devoção a santos católicos e bantos e a celebração do coletivo, também expunha denúncias à travessia transatlântica imposta aos negros escravizados ao longo de quatrocentos anos e às violências racial, religiosa e policial. Há também a exaltação à beleza dos ritos e santos negros, a tolerância só permitida pela convivência religiosa — na festa de Congado, todos são irmãos —, a sensação de pertencimento e de necessidade de preservação da natureza e a resistência dentro da ordem social imposta pelo Estado.
A saliva da fala é, portanto, um tratado a respeito das diversas possibilidades que a cultura brasileira pode e deve abarcar, sobre o que precisa urgentemente ser aceito para que o Brasil possa enfim se entender como diverso e plural. Cada pedaço deste país tem uma preciosidade que necessita ser reconhecida e difundida. Além da teoria, o livro traz uma antologia de cantopoemas para completar nossa compreensão sobre o que é verdadeiramente brasileiro.
É com essa vontade de contribuir para a mudança dos paradigmas da crítica literária — já presente em Entre Orfe(x)u e Exunouveau: análise de uma estética de base afrodiaspórica na literatura brasileira (Fósforo, 2022) que Edimilson de Almeida Pereira faz deste A saliva da fala mais uma frente em busca de abrir novos caminhos no cânone literário brasileiro.
Sobre o autor
Nascido em 1963, é professor na faculdade de letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). Seus livros mais recentes são Entre Orfe(x)u e Exunouveau (Fósforo, 2022); Blue note: entrevista imaginada (Papéis Selvagens, 2023). A primeira versão de A saliva da fala recebeu o prêmio Sílvio Romero/ Funarte, Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, 2002.