Este romance experimental e bem-humorado, porém de contornos trágicos, acompanha a dissolução mental de Ana, uma professora universitária de literatura às voltas com o confinamento da pandemia de Covid-19. Recém-saída de um divórcio, ela tenta elaborar o programa da disciplina que deve ministrar à distância, enquanto se divide entre uma relação paranoica com seu gato Felício, um caso com seu psiquiatra e um mergulho de cabeça em três relacionamentos amorosos seguidos. O primeiro deles, com Alice, jovem que Ana conhece em uma ocupação habitacional e com quem ela desenvolve uma plataforma de prostituição on-line para garantir a renda das demais moradoras durante a quarentena. Os outros dois casamentos fincam pé no absurdo com uma riqueza de detalhes desconcertante: um pangolim e um morcego são os improváveis parceiros — e vítimas — de Ana.
Narrado em primeira pessoa, o romance intercala relatos de uma rotina de alta voltagem sexual com lembranças da juventude da protagonista, em que já se encontrava plantada a semente da paranoia de fundo político que volta a atacar no enclausuramento doméstico. Aos relatos íntimos somam-se ainda as experimentações literárias, que Ana tenta encaixar na disciplina que precisa lecionar. Animais antropomorfizados e carregados de simbologia povoam os contos que ela, em estado de liquidação mental, julga dignos de figurar no programa do curso, enquanto seus colegas a alertam dos perigos de ir contra a correnteza em tempos politicamente sombrios.
Com uma prosa cristalina, cortante e sedutora, e coroado por um epílogo que abre a narrativa para o mundo contemporâneo com uma história real que nos convida a repensar a própria ideia de verossimilhança, o romance se metamorfoseia na caixa de Pandora. Dela também saem outros mitos clássicos, possíveis chaves de compreensão dessa atmosfera sexualizada, grotesca e violenta. Mescla habilidosa de crítica social e implacável autoironia, ‘Pandora’ lança mão do experimentalismo para melhor descrever uma realidade em que os perigos são palpáveis, mas as consequências não são compartilhadas de forma igualitária por todos.
Об авторе
ANA PAULA PACHECO é escritora e professora de teoria literária e literatura comparada na USP, autora dos livros ‘Lugar do mito’, sobre a obra de Guimarães Rosa (Nankin, 2006), ‘A casa deles’, volume de contos (Nankin, 2009), e ‘Ponha-se no seu lugar!’ (Ática, 2020), pelo qual recebeu o prêmio Seleção Cátedra Unesco.