Diante das notícias de guerra vindas da Europa, Dona Benta fica apreensiva sobre o futuro da humanidade. Todos no sítio se sentem impotentes, menos Emília, que sempre encontra um jeito de resolver os piores problemas. Sempre? Bem, dessa vez ela decide desligar a chave da guerra, mas se atrapalha e acaba baixando a chave do tamanho. As pessoas são reduzidas a poucos centímetros de altura, não maiores que insetos. Lobato retrata, nesta aventura, a insignificância do homem diante da natureza e o obriga a se adaptar a uma nova realidade, na qual dinheiro e poder nada valem. ‘Ou acabo com a guerra, e com esses ódios que estragam a vida, ou acabo com a espécie humana’, diz sabidamente a bonequinha em sua tentativa de salvar o mundo.
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Um século nos separa do Monteiro Lobato escritor, tradutor, editor e ativista. Nascido em 1882, o menino cresceu entre os livros da imensa biblioteca do avô, instalada no sítio da família em Taubaté, no interior de São Paulo. E foi ali que ele moldou a essência de sua produção literária e de seu pensamento, nitidamente marcado por uma encruzilhada: de um lado, a memória afetiva da vida interiorana; de outro, a necessidade de construir um país cosmopolita.
Essa é a chave que identificamos em suas obras. Na modernidade de Lobato, livro era objeto de consumo, demandava profissionalização e infraestrutura para disseminar a leitura pelo Brasil. Não por acaso, em suas histórias os livros são personagens constantes – quase um pó de pirlimpimpim a levar para outros mundos.
Lobato foi revolucionário. Até A Menina do Nariz Arrebitado (1920), contavam-se nos dedos de uma mão os autores brasileiros no gênero. Nossa literatura infantil praticamente nasce com ele, em sintonia com o projeto de libertar do atraso um país que devia ser feito com os ‘homens e livros’ de sua frase famosa. As aventuras de Emília e companhia apresentavam, na forma, outra revolução: o rompimento com a linguagem pomposa. Em seu lugar, entra em cena a oralidade, inserindo a literatura brasileira no século 20. No entanto, mesmo que pioneiro, Lobato era um homem do seu tempo, sujeito a limitações e contradições.
Sim, expressou em muitos escritos um racismo evidente – supostamente fruto de uma época, como se as épocas servissem de álibis… Ficamos espantados, naturalmente, com o uso de expressões como ‘negra beiçuda’ e ‘macaca de carvão’ para referir-se a Tia Nastácia. A dúvida é: como tratar hoje essa questão nas histórias voltadas para crianças?
O valor literário da obra de Lobato é inegável. Adulterar seu texto não pode ser opção. Houve quem se arvorasse a pedir censura parcial dos livros. Mais ou menos o que o abolicionista Rui Barbosa – um dos maiores entusiastas de Lobato, aliás – fez quando mandou queimar os arquivos da escravidão para apagar a grande mancha da nossa história. Como se a mancha fosse embora com o seu registro.
Mas ler Lobato hoje, no que ele traz de louvável ou reprovável, é uma aposta no poder transformador da literatura. Podemos aprender nosso papel num novo século, em que o preconceito e o racismo não são mais tolerados. Podemos fazer de nossos filhos parceiros não apenas nessa jornada pela fantasia, mas também na construção de um mundo melhor. Sem apagar a memória. Feito com homens e livros.