‘Compreensão é miragem’, diz Wilson Alves-Bezerra no prefácio de seu diário/delírio de viagem por diferentes línguas e culturas que se misturam a ponto de não sabermos mais onde estamos e em que língua (e sobre o que) lemos. Aliás, pergunta-se o poeta, ‘cuando uno no está en su lengua materna, donde estará?’. O taxista somaliano, de Malangue Malanga, está na terra do Tio Sam e conta, em inglês, que no seu país reza para Deus na mesma língua em que luta contra seus irmãos. Como compreender esse e outros paradoxos? Como compreender que ‘o culto irrestrito à liberdade encontra um limite na terra onde o chão não é meu, pero se disse que es nuestro’? A liberdade tem uma fronteira na terra, mas não na língua: com a língua, fazemos o que queremos, afinal, ‘cada um fala a língua que pode, e não se entende mesmo assim. Com as mezcla das mistura, ai sempre algo que se diz, algo que se perde, algo que se gana, algo que se desenganará’. E voltamos então ao começo: ‘compreensão é miragem’, ou, como diria Haroldo de Campos em Galáxias, ‘meço aqui este começo e recomeço’. O diário de Alves-Bezerra é uma galáxia à moda Haroldo de Campos, mas uma galáxia que quer que a América Latina seja seu centro (ou melhor, a sua Via Láctea), unida pelo portunhol. Bezerra dialoga, é claro, com Wilson Bueno, Douglas Diegues e outros escritores que se dedicaram e se dedicam ao portunhol, língua franca que torna completamente porosa a fronteira do Brasil com o mundo. Mas a galáxia do poeta se expande para outras experiências linguísticas, como o spanglish, um francês macarrônico e mesmo um português que está longe de ser homogêneo. Chega-se, assim, a uma ‘No man’s langue’ que, por não pertencer a ninguém, abre as portas para todos. No português galáctico de Wilson Alves-Bezerra, fala-se infinitamente, mesmo quando se exige que a boca se feche. A avó, a tia e a mãe falam: ‘Fermez la bouche la langue la mouche. La buela cora zón no para. La tía cora cornalina. La madre cora som bandido’. É a impossibilidade de calar que mantém a língua viva, mesmo que haja nela censuras, pois, na ‘orgia de silêncios’, ecoam sons, aliterações e assonâncias, como ‘uma sirena urbana, una sereia humana, que trina o apita o llora del otro lado da rua’. Um silêncio para se ouvir, um ruído musical. Essa é a língua que ‘a sombra do general’ latino-americano ameaça, que a violência social quer calar, mas que, assim mesmo, é celebrada neste livro: ‘É o fim dessa lenga língua, da litania, do miserere da matilha, da novena, da dezena, da centena, da milícia. Celebrai a inutilidade da poesia’. Dirce Waltrick do Amarante Sérgio Medeiros
关于作者
Wilson Alves-Bezerra (São Paulo, 1977) é poeta, tradutor, crítico literário e professor de literatura no Brasil. É autor das seguintes obras literárias: Histórias zoófilas e outras atrocidades (contos, EDUFSCar / Oitava Rima, 2013), Vertigens (poemas em prosa, Iluminuras, 2015, que recebeu o Prêmio Jabuti 2016), O Pau do Brasil (poemas em prosa, Urutau, 2016-2020) e Vapor Barato (romance, Iluminuras, 2018). Tem livros publicados também em Portugal – Exílio aos olhos, exílio às línguas (Oca, 2017), O Pau do Brasil (Urutau, 2018-2020) e Necromancia Tropical (Douda Correria, 2021) – Chile – Cuentos de zoofilia, memoria y muerte (LOM, 2018) – Colômbia – Catecismo Salvaje (El Taller Blanco, 2021) – e El Salvador – Selección de Poesía (Secretaría de Cultura de San Salvador, 2021). Publicou ainda os seguintes ensaios: Reverberações da fronteira em Horacio Quiroga (Humanitas/FAPESP, 2008), Da clínica do desejo a sua escrita (Mercado de Letras/FAPESP, 2012) e Páginas latino-americanas – resenhas literárias (2009-2015) (EDUFSCar / Oficina Raquel, 2016). Atua como tradutor literário: traduziu autores latino-americanos como Horacio Quiroga (Contos da Selva, Cartas de um caçador, Contos de amor de loucura e de morte, todos pela Iluminuras), Luis Gusmán (Pele e Osso, Os Outros, Hotel Éden, ambos pela Iluminuras) e Alfonsina Storni (Sou uma selva de raízes vivas. Iluminuras, 2020, com bolsa da Fundação Pro Helvetia e Casa do Tradutor Looren). Sua tradução de Pele e Osso, de Luis Gusmán, foi finalista do Prêmio Jabuti 2010, na categoria Melhor tradução literária espanhol-português. É professor de Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos.